Autores: Luiz Humberto de Farias Del´Isola
e Rodolfo de Mello Prado
“Brasília começou do NADA. Não havia casas, instalação elétrica, água, recursos humanos, NADA, absolutamente NADA. E se o milagre se operou, é que Brasília foi construída sob os impulsos de uma inabalável fé nos destinos do Brasil” Essas são palavras do “pioneiro do antes”, que é como se intitulava o Dr. Ernesto Silva, na sua “História de Brasília”.
Verdade? Ficção? O que era esse cerrado nosso, antes de o presidente Juscelino decidir trazer para cá a nova capital do país? Era exatamente isso: um cerrado no meio do Brasil, cerrado ralo, com algumas matas de vereda, algumas manchas aqui e acolá de terra um pouquinho melhor, um cerrado de seriemas e de sucuris, de tatus e veados mateiros, um pedaço do Grande Sertão de Guimarães Rosa. Havia pouca civilização por aqui, bem verdade. População escassa, gente pouca. Uma que outra
cidadezinha velha, escondida dentro dos morros onde tinha havido ouro, já extraído desde os Anhangueras. Santa Luzia, Formosa dos Couros; Paracatu do Príncipe um pouquinho mais longe. Corumbá e Pirenópolis, cidades quase que fantasmas, guardiãs de um passado de glória mineradora já esquecido.
Cultura, por outro lado, havia sim. Havia populações antigas e tradicionais, havia tradições e costumes, havia um modo de viver das poucas gentes
habitantes desse cerrado nosso.
Por que razão os nossos pioneiros fazem questão de ressaltar o NADA? Simples, a resposta: todos os que viemos para cá construir o sonho de Juscelino nos sentimos um pouco heróis, algo como bandeirantes, construtores de utopia. Embora chegados a um espaço territorial já semi-povoado e conhecido, a nós parecia que éramos desbravadores. Sentíamo-nos como missionários, arautos do futuro que nós mesmo iríamos construir. Éramos os conquistadores, a vanguarda, o amanhã. Víamos os poucos habitantes do Planalto Central com algum desdém. Afinal, o cerrado estava aqui desde sempre, e sempre esteve largado, ninguém cuidava dele. Somente nós, os pioneiros, a vanguarda da utopia juscelinista, poderíamos construir o mundo novo, a capital da esperança, a cidade modernista.
Natural, pois, a nossa vaidade. Natural, também, o nosso orgulho quando olhamos para trás, para um passado nem tão distante e constatamos o tamanho da mudança que ocorreu nesse cerrado em pouco mais de 60 anos. Essa mudança, quem a fez? Nós, os pioneiros. Nós, os que acreditamos nas palavras de JK e nos sonhos de Dom Bosco.
Não é fácil, para os que não viveram os tempos da construção, avaliar o difícil que foi construir Brasília. Foi um tempo de dificuldades e foi um tempo de glória. Foi áspero e foi alegre. Foi divertido e, as vezes, foi trágico. Quando morreu Bernardo Sayão, foi um choro só, em cada canteiro de obra, em cada loja de madeira, em cada barraco de lona ou de saco de cimento (sim, que houve quem morasse em baixo de tais choupanas) . Foi trabalho muito, e duro. De dia, ou era poeira ou era lama. À noite, quem não tivesse gerador de luz próprio, ia dormir com as galinhas, ou gastasse vela ou querosene de lampião.
Um traço marcante da época: não havia fim de semana. Corrijo: havia sim, que o calendário não eliminara sábados e domingos. Só que eram dias de trabalho iguais a qualquer outro, segunda ou quinta. O comércio não fechava, as obras não paravam. Os martelos continuavam a bater pregos, as betoneiras rodavam concreto, batiam-se formas e tijolos subiam paredes. As grandes construtoras faziam revezamento para que parte da equipe pudesse folgar, enquanto o restante dos trabalhadores continuava a erguer a nova capital.
Os primeiros moradores de Brasília andavam empoeirados, rico ou pobre, engenheiro chique ou peão banguela. A poeira igualava… ou a lama, que aquele foi um tempo de chuvas de fazer vergonha às atuais. Eram chuvas de verdade, dilúvios que não exigiam arcas mas ensopavam tudo e todos. Poucos ousavam usar roupas claras, e a cor preferida era o caque (já vinha empoeirado). Sapato não, botina. Botas, para os mais elegantes.
Foi nesse cenário que, no dia 26 de abril de 1958, um grupo se reuniu em uma salinha do DVO, na sede da NOVACAP, onde hoje é a Candangolândia. Explico: DVO era o Departamento de Viação e Obras, e NOVACAP era a empresa constituída por JK com uma específica e exclusiva função: construir Brasília. Esse grupo era integrado por 32 homens e uma exclusiva e solitária senhora. Eram todos pioneiros de longo tempo, chegados ao canteiro de obras no início de 1957. Veteranos, portanto. E fundaram o primeiro clube social de Brasília: o Brasília Country Club, BCC ( sem “e” no fim da palavra clube, para deixar bem claro o modelo dos country clubs ingleses que foram a sua inspiração).
Não havia Brasília ainda, poucas obras estavam prontas: o Brasília Palace Hotel estava funcionando e era chamado Hotel de Turismo; o Palácio do Planalto estava sendo levantado (era conhecido como Palácio dos Despachos) e o Alvorada estava para ser inaugurado. A Ermida Dom Bosco já estava lá, mas lago não existia. No Rio de Janeiro, a nova capital era atacada diariamente pela grande imprensa. Acusavam JK de maluco, de megalomaníaco, de gastar fortunas no meio do nada, chamavam-no de faraó construtor de pirâmides no deserto… a campanha contra a nova capital era feroz. A Belém – Brasília, estrada que Bernardo Sayão mal começara a abrir, era chamada de “estrada das onças”. De onde aquele grupo tirou forças para inventar um clube social no meio de um canteiro de obras? Seriam loucos, sem juízo, delirantes? Sim, eram todos loucos, todos delirantes. A loucura que os possuía era a mesma loucura santa de Juscelino: a fé num futuro melhor, a crença na capacidade do povo brasileiro. Eram, como era JK, sonhadores. Tão sonhadores eram que, acreditando no presidente, vieram transformar sonhos em realidade. Foram construtores de sonho. Que espécie de gente era essa, o que faziam, de onde vieram? A maior parte deles era engenheiro de formação. Quase todos trabalhavam na NOVACAP. Alguns eram empresários de peso, como os proprietários das construtoras Rabelo e Pacheco Fernandes, Dantas. A elegantíssima Eleonora Morandi Quadros era proprietária da construtora MM Quadros, e percorria as obras a bordo de um Jeep. Parecia imune à poeira e à lama. Nada lhe tirava a elegância e a beleza. Eleonora foi a primeira musa da capital que se levantava do nada. Moacyr Gomes e Souza era o diretor do DVO e, inaugurada a capital, tornou-se conselheiro do Tribunal de Contas do DF (na época, os conselheiros eram apenas cinco e eram chamados Ministros). Pery da Rocha França era engenheiro, e Diretor de Obras da Novacap. Figura inesquecível: não satisfeito com pranchetas e régua de cálculo (antes de calculadoras e computador, pobre do engenheiro que não tivesse a tal engenhoca. Ela fazia contas com velocidade apreciável), Pery foi à pauta. Sim, à pauta de notação musical. Era um violinista virtuoso, a ponto de ser o “spalla” (é o solista) da Orquestra Sinfônica de Belo Horizonte. Cantor também: baixo- barítono, apresentou-se em várias óperas. Tinha grande orgulho de ter cantado a “Dom Giovanni”, de Mozart. Trouxe à Brasília ainda em obras o Madrigal de Belo Horizonte. Além de tudo, pilotava aviões… Israel Pinheiro não desgrudava de Pery. Durante a sua vida pública, Israel foi deputado, governador, prefeito. E carregava Pery junto. Outra figura notável desse grupo foi Antonio de Paula Pontes. Chegou ao canteiro de obras para implantar o Banco da Lavoura de Minas Gerais, o primeiro banco do território de obras. Tonico, como era conhecido, foi uma alavanca para muitos dos primeiros comerciantes e industriais que vieram para a construção de Brasília. A Associação Comercial de Brasília, fundada em maio de 1957, foi organizada na sala de sua residência. Dino Daldegan foi também pioneiríssimo. Era proprietário da primeira pedreira a funcionar no canteiro de obras. Sem pedra britada, não há concreto e sem concreto, não haveria Brasília.
Foram sonhadores e delirantes dessa espécie, pois, os que tiveram a ousadia de inventar um clube campestre numa cidade que ainda não havia. Disse o dr. Moacyr Gomes e Souza, ao abrir a reunião na salinha do DVO que ”interpretando os desejos a ele manifestados por várias pessoas, no sentido de se dotar a Nova Capital Brasileira de um clube de características campestres, à semelhança do que acontece nas principais cidades do mundo… O doutor Israel Pinheiro da Silva me convidou, e a um grupo de amigos, para criarmos uma associação campestre nos moldes dos country clubes espalhados pelo mundo, para o que cederia o terreno necessário no Gama, englobando os atuais Palácios Provisórios R.P. 1 e R. P. 2” Bem o disse, melhor o fez: ainda em abril de 1958, a Diretoria da Novacap doou ao recém nascido BCC uma área de 184 hectares, incluindo os dois Catetinhos (sim, houve dois Catetinhos, e não apenas o que lá está hoje.) Isso transformava a recém nascida agremiação campestre em um dos maiores clubes sociais urbanos do Brasil. O Conselho da companhia referendou essa doação em março de 1960.
Uma curiosidade: da relação dos nossos fundadores não consta um único parlamentar, senador ou deputado federal. Não há um escasso ministro, um solitário desembargador. A razão é simples, é óbvia: não os havia por aqui, então. À época, ainda estavam todos no Rio de Janeiro, desfrutando as praias de Copacabana e as belezas e conforto da Cidade Maravilhosa. Alguns, até torcendo para que a “maluquice” de Juscelino desse errado. Afinal, trocar camarão e praia por poeira, pequi e canelas de ema não era algo a se fazer sem uma dose de susto… Inaugurada a Capital, em 1960, quando aqui chegaram os três Poderes da república, puderam as nossas autoridades desfrutar da “invenção” daquele bando de construtores de sonhos, dos delirantes inventores de um “country club” no meio do cerrado. E muitos, inúmeros, um sem conta de parlamentares, desembargadores e ministros aderiram ao BCC. Também eles aderiram ao clube campestre e ali encontraram aconchego, prosa boa e lazer para si mesmos e para suas crianças, o que amenizava as dores da partida… Afinal, não foi fácil para ministro ou senador, para juiz ou general afastar-se subitamente do Rio, cidade onde tinham famílias, laços de amizade, seus “lares e penates”.
O pioneirismo do BCC fica ainda mais nítido quando se analisa a locação escolhida: além de englobar, na época, os “Palácios Provisórios I e II”, o clube abrigava ainda a sede da Fazenda Gama e a pista de pouso utilizada por Juscelino Kubitschek quando, pela primeira vez, em 26 de outubro de 1956, o presidente botou os pés no sítio do que viria a ser a futura capital do país. Ao seu lado, ficava a primeiríssima estação de rádio: a da Panair do Brasil. Esses evento são relembrados no Museu da Casa Velha, iniciativa do Country Club para não deixar que se perdessem os marcos iniciais da grande epopeia que foi a construção de Brasília. Lá está também o monumento funerário em homenagem a Ernesto Silva, o “pioneiro do antes”.
Outra preciosidade que está situada dentro da área do Country Club e que tem grande valor histórico é a famosa “ducha do Catetinho”. E uma queda d’água que, descendo da mina existente na área do Catetinho, cai por cerca de cinco ou seis metros. Originalmente, essa queda fazia funcionar uma roda Pelton, responsável pela geração de energia para o palácio presidencial provisório. A ducha é um dos pontos mais frequentados pelos associados do clube.